FLAUTA DOCE - ARTE DA CONSTRUÇÃO

19/03/2013 23:31

 

FLAUTA DOCE - ARTE DA CONSTRUÇÃO

 

1- PANORAMA SOBRE A CONSTRUÇÃO DA FLAUTA DOCE

 

            No passado os construtores de flauta doce (ou de instrumentos de sopro de madeira em geral) trabalhavam utilizando técnicas artesanais, quando o resultado final era a manufatura de instrumentos musicais únicos e individuais.

            Através de gravuras do século XVIII temos a representação de como era este ofício, quando o tipo de ferramenta usada era feito pelos próprios “luthiers”. Saliento que ao mencionarmos na atualidade as centenárias técnicas da “lutheria” temos que nos reportar obrigatoriamente ao tipo de trabalho representado nestas gravuras. Portanto, por motivos comerciais, dificilmente encontraremos na atualidade algum construtor em que seu trabalho seja 100% fiel ao ferramentário usado na época.

            O que podemos nomear nos dias atuais é o tipo de fabricação, que leva em conta alguns parâmetros. Em um primeiro momento estou me referindo ao número de pessoas envolvidas no processo de elaboração e no grau de mecanização da fábrica de flauta doce. Sintetizando poderia colocar da seguinte maneira os tipos de fabricação.

 

INDUSTRIAL

 

            Produção de flauta doce com máquinas potentes que fazem praticamente tudo. O canal de ar é feito com as bordas paralelas e sem curvatura no teto ou no bloco. O teto é muito alto e o bloco é muito baixo com relação à linha do “bizel” (região no final da rampa), isto com a finalidade de diminuir os possíveis problemas no futuro. Os furos para os dedos não têm “undercutting” (não são cavados por dentro), são retos. Nesta categoria estão enquadrados os instrumentos de plástico ou resina, ou seja, os confeccionados a partir de moldes, sem utilização de torno.

 

SEMI-INDUSTRIAL

 

            O “voicing” (região que produz o som, ou seja, compreende o canal de ar, o bloco, a rampa, chanfros, etc.) já é mais elaborado, o bloco está mais alto com relação ao “bizel”, os chanfros são mais calculados e o que talvez definisse melhor esta categoria fosse o controle manual no processo final de fabricação da flauta doce.

 

MANUFATURADO

 

            Aqui já existe um cuidado muito maior na construção, o canal de ar tem uma curvatura, o bloco possui uma conicidade horizontal, os chanfros são colocados de maneira a obter determinadas características, os furos para os dedos possuem “undercutting”, entre outros aspectos. A secagem da madeira recebe maior atenção e cada instrumento é tratado como único, do princípio ao fim existe o contato direto com o construtor. Boa parte das ferramentas é feita pelo “luthier”. Tudo isso garante um resultado muito mais rico que pode ser apreciado pelos flautistas. Talvez sintetizando o resultado desta categoria eu pudesse definir como uma obra de arte única, personalizada, por isso recebe maior prestígio que os demais tipos de fabricação.

            O material usado atualmente para a confecção da flauta doce vai desde o sintético (resina ABS, plástico, cerâmica, metal, acrílicos, etc.) à diversos tipos de madeiras. Como resultado os sintéticos são muito estáveis com relação à temperatura e umidade, mas não gozam da riqueza possibilitada pela madeira. No entanto, existem flautas sintéticas que no geral são bem melhores do que muitas feitas de madeira.

            O resultado acústico das flautas em madeira ainda não tem consenso na opinião de músicos, físicos e construtores. É algo que entra muito a estética sonora e ainda não está bem definido.

            Como resumo para o panorama atual da construção poderia salientar o esforço de muitas fábricas e “luthiers” no sentido de aprimorar o instrumento, oferecer cada vez mais flauta doce com melhor qualidade e menor preço e prazo de entrega. Também não poderia deixar de citar os vários construtores que produziram instrumentos com o intuito de estender seu registro, produzir variações dinâmicas sem maior prejuízo para afinação, aumentar seu volume sonoro, etc.

 

2 – COMO ESCOLHER UMA FLAUTA DOCE?

 

            Esta pergunta imediatamente nos reportar à outra: flauta doce sintética ou de madeira?

            Se tivermos como meta a iniciação musical de crianças eu diria que o custo-benefício da flauta doce sintética é muito bom. Ela é bastante resistente e também pode ser desmontada e lavada com detergente. Pode se tornar um excelente veículo de educação musical para iniciantes.

            Mas se tivermos como meta que este estudante quer realizar um trabalho maior de sonoridade, descobrir todas as possibilidades do potencial acústico da flauta doce, obrigatoriamente temos que optar pelo instrumento de madeira.

            Para auxiliar um pouco no entendimento ao comprar uma flauta doce de madeira, gostaria de sugerir algumas características como um guia para testar o instrumento. Saliento que em uma flauta nova todos os aspectos a seguir podem não aparecer perfeitamente definidos, pois o instrumento novo ainda precisa passar pelo trabalho de amadurecimento, o qual será abordado no item “3” . Eu sempre busco colocar estes elementos nos meus instrumentos, pois ressaltam parâmetros mais técnicos, pois a estética sonora ou o caráter do instrumento é algo mais subjetivo, portanto de difícil interpretação.

 

A - Riqueza e homogeneidade de timbre

 

            Resumindo seria aquele som belo que vai desde o grave ao agudo com sua riqueza de harmônicos. Claro que cada modelo pode se destacar como mais “anasalado”, “arredondado”, “ aveludado”, etc. Porém na síntese o instrumento deve ter som aberto, claro e as oitavas equilibradas. Um aspecto interessante da flauta doce é que quando o construtor privilegia o grave, o agudo sofre uma perda, e quando privilegia o agudo o grave empobrece um pouco. Mas eu considero mais interessante quando se tem um grave mais marcante e rico. Nas minhas flautas procuro equilibrar este privilégio entre grave e agudo.

 

B – Resistência

 

            Este aspecto deve existir em menor ou maior grau, tem que se fazer presente.  O grau de resistência das notas à pressão do sopro, ou seja, o quanto uma nota se sustenta afinada quando se realiza uma dinâmica de piano para forte, tem sua importância. Principalmente para os flautistas que sopram com muita pressão. Este ponto leva um pouco do gosto pessoal de cada um, pois tem a ver com a maneira de tocar do flautista. Conheço pessoas que gostam de flauta com muita resistência, já outras preferem com mediana resistência, pois corresponde à maneira dele tocar.

 

C – Resposta

 

            Ao soprarmos uma nota podemos observar que existe um tempo para que a mesma soe. Este tempo é a resposta ao ataque da nota.  Cada modelo tem o seu e o que poderia salientar é que devemos evitar as flautas em que o C’’# (contralto) e o G’’# (soprano) não saem com facilidade, pois geralmente o F’’’ (contralto) e o C’’’ (soprano) ficam comprometidos na emissão ou então nem saem. Eu gosto de flauta com resposta rápida, instrumentos cuja articulação seja variada e que soe fácil em todas as oitavas. Mas vale falar também que se formos “fidelizar” ao máximo copiando nos mínimos detalhes os originais do século XVIII, encontraremos flautas que se destinam mais a um repertório virtuosístico (uma J. Denner por exemplo), e outras que não é possível se ter tanta flexibilidade de velocidade (uma T. Stanesby Sr. por exemplo). Daí a idéia de que cada modelo será mais apropriado a um tipo específico de repertório. Uns precisam de som mais “cheio”, “redondo”, outros necessitam de articulação ou resposta muito rápida. Como sugestão eu diria que para um primeiro instrumento seria bom optar por um com boa resposta e que “fale fácil” em todas as oitavas. É interessante o estudante conversar apropriadamente com seu professor sobre este assunto.

 

D - Afinação

           

            É importante que a afinação se mantenha dentro de um padrão em que é possível ajustá-la de forma mais sutil através da colocação ou retirada de algum dedo. É algo mais delicado falar até porque em instrumentos novos, como a madeira irá se modificar em função de variações de clima e do próprio uso, a flauta precisará passar por uma manutenção com o construtor depois de um tempo. Mas é preferível um instrumento em que exista um equilíbrio de afinação para um dedilhado específico.

            Outra característica que sugiro observar é a aparência, a estética física da flauta doce. Este ponto mostra o grau de cuidado e detalhamento do construtor. Além de valorizar mais o trabalho do “luthier” isto também mostra o grau de perfeição “injetado” no instrumento.

            Sabemos agora todos esses pontos, que ao testarmos uma flauta doce seria interessante observar aspectos como o timbre, resistência, resposta, afinação e a estética.  E se mesmo percebendo tudo isto no instrumento e o mesmo não despertar em nós aquele “prazer” ao tocá-lo? O que estará faltando? Aqui entra o gosto pessoal, é preciso encontrar aquela flauta em que seu caráter desperte em nós aquela sensação de “prazer”, e para isso não existe regra, só testando para identificar pontos como flexibilidade, foco, etc.

            Quero ressaltar mais ainda que uma flauta nova, que acabou de sair de “forno”, deve passar pelo trabalho que abordarei no item 3 (amaciamento). A madeira vai se modificar e o som sofrerá mudanças. Isto é normal, é tanto que eu aconselho retornar o instrumento depois de um tempo de uso para manutenção. Como sempre falo, a madeira é um material instável por natureza, é um organismo “morto- vivo”. Morto porque se trata de células mortas e vivo porque está sempre em processo de adaptação ao clima local (temperatura, umidade e pressão).

            Sobre os grupos de modelos de flauta doce, poderia indicar que a escolha vai está associada ao repertório que se vai tocar. Sabemos que existem flautas medievais, renascentistas, de transição, barrocas e contemporâneas. Portanto, se temos a intenção de tocar música fidelizando ao máximo os aspectos históricos, então temos que escolher o modelo apropriado. Se vamos tocar música renascentista temos que optar por instrumentos renascentistas. Se vamos tocar música barroca então vamos utilizar flautas barrocas. Assim se segue com os demais períodos da história da música.

            Quanto à questão do tipo de madeira para flauta doce eu diria que as espécies com densidade muito baixa não são interessantes.  Eu gosto daquelas madeiras cuja densidade esteja acima de 0,7 g/cm3. As madeiras enquadradas como “moles” geralmente produzem sonoridade mais doce e suave. Sofrem um desgaste maior em função da umidade do sopro e tendem a ter a vida útil mais curta que as chamadas madeiras “duras”. Estas, dependendo da densidade e outros aspectos como ressonância, geralmente produzem sonoridade mais rica, brilhante e potente. Mas o construtor é quem irá definir muitos aspectos durante a construção, se a flauta será “metalizada” ou “aveludada”, etc. E também o flautista terá um trabalho de “acomodar” a madeira de acordo com sua maneira de tocar, e também terá que ser maleável para se adaptar às características do instrumento feito em determinada madeira. Temos uma riqueza inestimável na flora brasileira esperando ser descoberta. Para os interessados, segue link sobre pesquisa realizada com madeiras brasileiras que poderão ser utilizadas na construção de instrumentos musicais: www.funtecg.org.br. Resumindo, várias espécies de madeira nacional têm um potencial acústico muito grande, cabe aos construtores e aos instrumentistas valorizar e pesquisar esta riqueza brasileira.

 

 

3 – Como cuidar da flauta doce de madeira

 

    O instrumento de madeira é o resultado de um trabalho artesanal, manufaturado, e como tal merece alguns cuidados e observações para ser mantido em boas condições de uso. O instrumento pode ser preservado principalmente quando é tocado de maneira correta.

    Inicialmente a madeira precisa se adaptar a temperatura e umidade local e à maneira de tocar do flautista, e é importante que a utilização seja gradual nas primeiras semanas. O tempo de execução diária na primeira semana não deve exceder 10 minutos, progressivamente pode-se ir aumentando até a madeira se estabilizar. Sugiro a tabela a seguir como guia de planejamento que se seguido trará bons resultados no desenvolvimento da flauta.

1° semana – 10 minutos de execução diária (duas vezes ao dia);

2° semana – 15 minutos de execução diária (duas vezes ao dia);

3° semana – 20 minutos de execução diária (duas vezes ao dia);

4° semana – 25 minutos de execução diária (duas vezes ao dia).

    Enfatizar estudos na região média e grave (1° registro) com notas longas e/ou escalas, coisas simples, prestando atenção para equilibrar entonação, harmonia e dinâmica, e não forçar a resistência do instrumento. Desta forma estaremos favorecendo um desenvolvimento equilibrado do instrumento.

    Não exponha a flauta a mudanças súbitas de temperaturas. Não deixe dentro de carros estacionados, sob a incidência direta da luz solar ou em temperaturas muito baixas. Nunca toque na lâmina do “bizel” (região do final da rampa, na janela), isto pode danificar todo o sistema de produção do som.

    É importante está com as mãos limpas e isentas de suor e gorduras ao tocar na flauta, isto para evitar oxidação na madeira e/ou manchas. Também é bom está com os dentes escovados quando for tocar, pois se evita que alguma partícula de alimento fique depositada no interior da flauta, principalmente no canal de ar, onde podem criar fungos e bactérias e prejudicar a madeira.

    Para diminuir a condensação no canal de ar aconselho aquecer o instrumento, principalmente no “voicing”, antes de tocar, colocando-o junto ao corpo ou soprando delicadamente no interior da flauta para que a temperatura interna seja próxima da do sopro. Após o uso, desmontar as partes, secá-las com tecido macio e deixá-las repousando até secar completamente.

    O óleo de amêndoas pode ser usado de forma contínua e moderado. Aconselho olear o interior completo do corpo e do pé, e na cabeça somente até a rampa (NÃO PASSAR ÓLEO NO BLOCO, uma de suas funções é absorver convenientemente a umidade do sopro sem se alterar muito, e estando saturado de óleo o mesmo pode não ter um bom desempenho). A cada semana lubrificar o interior da flauta e também quando sentir a madeira um pouco seca, e deixar repousando algumas horas em posição vertical e depois enxugar o excesso com tecido macio.

    Com cerca de doze meses aconselho levar a flauta para ser feita uma manutenção, para ser feito serviços (se necessários) como “revoicing” (manutenção no bloco, canal de ar, rampa...), “reboring” (alargar novamente as medidas internas) e correção de afinação. 

    Caso tenha alguma dúvida não hesite, é só perguntar, terei o maior prazer em ajudá-lo.

    Atenciosamente, agradeço a preferência,

 

M. Ximenes